quinta-feira, 22 de julho de 2010

Passárgada, quiçá pras férias!

por Daniel Gutierrez


Fui-me embora pra Passárgada, primeiro porque falaram que lá era uma terra com palmeiras onde cantava o sabiá. Como não bastasse, me convenceram que as aves que aqui gorgeiam, ih rapaz... não gorgeiam como lá, nem de perto. Aí, como eu tava de saco cheio desse mundinho aqui, deu na telha: vou conhecer Passárgada.

Quando cheguei -- olha o baque -- vi que lá tudo era assim: dentista banguela, coiffeur careca, nutricionista obeso, adolescente velho, enfim. Era tudo muito louco, tudo ao contrário... Bom, nem vou comentar os políticos do lugar... Não tinha UM sequer que fosse corrupto.

Ah, bicho... pensei comigo: tá tudo muito errado! Juntei as trouxas e deu na telha de novo: olha eu cá de volta. Passárgada, enfim, não era pra mim.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Carneficina

por Daniel Gutierrez

As manchas de sangue dominavam cada greta, cada canto, cada rachadura das paredes, do chão, e daquela mesa -- imunda, com lascas de carne, osso e gordura. O aspécto mórbido do salão era completado pela essência fétida de carne morta, fresca. Do silêncio que emanava dali, não se podia partilhar da dor que resultara dos golpes de machado e marreta que mataram tudo que ali estava morto.

Das duas passagens que havia na sala, uma estava cerrada e tinha uma portinhola vazada. Da outra, se via sair certa fumaça, de tão frio que era o ambiente além dali. Interrompe este vapor um homem: imenso, pálido, de barba cerrada, não menos que a porta. Numa mão, uma carcaça, empunhada pelo osso... talvez um fêmur, quem sabe...? Na outra mão, 50 centímetros de lámina, reluzindo no corte de tão afiada.

De um só movimento, jogou o pedaço de cadáver na bancada, ainda suja. De um só golpe, cortou com o cutelo uma farta porção daquela carne. Tinha na face um olhar de prazer, como quem bem cumprisse seu trabalho.


Lá de fora, um grito irrompeu aquele silêncio... e pôs ao chão a macabreza de todo o conto:

"Oh, seu açougueiro! Se for de porco, quero três bifes desse pernil!"


Vale lembrar que não sou vegetariano. Os motivos deste continho são: brincar com nossas capacidades de percepção, além de levantar um autoquestionamento sobre o modo, muitas vezes indigno, com o qual tratamos os animais que usamos pra nossa própria sobrevivência. Se, com você, consegui cumprir só um desses dois intuitos, estou feliz.

terça-feira, 6 de julho de 2010

De passagem

por Daniel Gutierrez


Naquele momento, bêbado de tédio, abri um olho com dificuldade e vi a Vida passando. Lenta. Quase parada. Com tudo que é força que consegui juntar, perguntei:

"Você ainda demora muito pra acabar?"

A Vida, com ternura no olhar:

"Volta a dormir. Eu ainda nem vesti as luvas!"