quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Jacinto não sentia

Nem o sol saíra, lá estava ele, sob a soleira da porta. Era dia de missa d'alvorada, que ele gostava de dizer assim, com apóstrofo.

Era finzinho da madrugada de quarta-feira de um verão comum naquele lugar. Chovia quase todo dia, entre o fim da tarde e o início da noite, mas já fazia alguns dias desde que São Pedro decidira pelo estio. Talvez por isso, o céu tivesse aquelas nuvens: vaga promessa de precipitação mais tarde. Bom, o que importa é que aquela manhã era fresca. Tinha uma brisa suave, aconchegante. Beirava o carinho. Mas Jacinto não sentia. Nem o frescor daquela manhã, nem o cafuné do vento.

Não sentia, mas via. Via que as folhas da jardineirinha, à esquerda da porta da frente, na varanda, balançavam levemente. E como ele era só, fingia que sentia e acabava gostando da suposta maciez com que o ventinho roçava a barba, curta e rala, dele. Chamava o sopro de "zéfiro", embora a primavera já tivesse passado e ele não soubesse se vinha mesmo do oeste. É que ele gostava do mito de Jacinto, que leu quando era novo, intrigado sobre a origem do próprio nome. "É grego!", exclamou quando soube, aos 16. Apaixonou-se por mitologia. Tanto que cultivava jacintos naquela jardineira. Eram azuis, quase iguais ao cabelo dele. (Sabe quando o grisalho fica azulado? Então.) Formou-se em história, mas não exercia. A bem da verdade é que Jacinto deixou de sentir depois da formatura. Não sentia amor, não sentia ódio, não sentia paixão. Nem frio, nem calor, nem medo, nem gosto, nem cheiro, nem sabor. Nem vontades. Nada.

Foi à missa a pé, ainda sob o breu. Ele não sentia a presença de um Deus, mas precisava manter a vida em comunidade. Afinal, o também grego Aristóteles já havia fundamentado, antes do próprio Cristo, a tese de que "o homem é um animal social". Dava o abraço da paz, mas não sentia o calor humano dos irmãos que abraçava. Comungava, mas não sentia o gosto da hóstia ou do vinho. Numa confissão, certa vez, o padre disse que Jacinto talvez merecesse o céu por tamanho suplício em terra, mas seria um felizardo porque, normalmente, a vontade de pecar vem do sentimento. "Felizardo?! Só me diz qual a próxima penitência, padre."

Eu não consigo imaginar como Jacinto vivia sem sentir. Dizem que quem perde um dos sentidos acaba aguçando os outros, como forma de suprir a necessidade que ficou. Por isso alguns cegos teriam a audição mais apurada. Eles aprendem a viver com o que lhes falta. Mas como é que se vive sem sentir?! Não dá nem pra dizer que pode ser doloroso, porque nem dor ele sentia.

Jacinto não fazia a barba pra evitar escoriações ou mutilações. No início, machucou bastante o rosto e o pescoço, que agora a barba cobria. Talvez por isso fosse rala. Quem fazia era o barbeiro, uma vez por mês, barba, cabelo e bigode.

"Vão em paz e que o Senhor vos acompanhe", disse o padre. "Demos graças a Deus", responderam Jacinto e os que estavam na igreja. Como era de costume, dali ele passaria na padaria e compraria pão. Ele gostava de pão com manteiga e café antes de parar de sentir. E foi um dos únicos hábitos que ele manteve (junto com o de cultivar jacintos na varanda). É que ficou difícil manter uma rotina, quando já não havia prazer no que ele fazia. Mas comprar pão depois da missa era nostálgico -- ele não sentia a nostalgia, mas gostava de lembrar. Tentava resgatar aquilo.

Chegou em casa, passou o café, sentou no banco da varanda, no alpendre, abriu o jornal, leu as notícias. Lia tudo. Não tinha uma editoria preferida. Lia porque ler construía a história. E não porque fosse o que ele tinha estudado, mas porque era o único modo de manter a memória, afinal o conhecimento, o léxico, o raciocínio de Jacinto substituíam o sentimento e as sensações. Por isso, ao fim do dia, ele relia tudo que havia lido, pra organizar as ideias. Ele era quase uma máquina: não perdia tempo com nada. Só fazia o que tinha que ser feito.

O almoço, por exemplo. A casa dele era um tanto quanto diferente do lado de dentro. Tinha termômetros e espelhos grandes junto de todos os relógios. E eram dois relógios pra cada cômodo. Assim, ele sabia quando era hora de se alimentar, se a temperatura estava muito baixa, muito alta, se era a hora do banho, ou se ele precisava tomar banho, ainda que fora de hora, enfim. E na hora do almoço começou a chover. Tranquilamente, terminou de comer. Só comia o que o corpo necessitava: um pouco de cada nutriente. Não variava, porque não precisava. Todos os dias, era arroz, feijão, frango grelhado e salada de alface. E água.

Lembrou que tinha esquecido de regar os jacintos e foi botá-los na chuva. Lá fora, com a jardineira nas mãos, andou até a chuva. Os pingos caiam no braço dele e ele lembrava que a última vez que beijou a única mulher que já tinha amado (e que já o tinha amado) foi numa tarde chuvosa, dias antes da formatura. Isso fora havia mais de 30 anos... mas ele lembrava com tanta vivacidade que poderia descrever a sensação. Mas ele só lembrava: não sentia saudades também. E não conseguia nem sentir raiva por causa disso.

Foi nessa hora que ele olhou para os jacintos, na chuva, e quase sentiu algo: inveja. Mas também não pôde. Afinal, Jacinto não era um cara triste. Mas também não era um cara feliz. Era um cara que voltaria pra casa, secar aquela água de chuva, pra não ficar doente, ciente de apenas uma coisa: ele não sentia nem que existia.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Pipoca

Um fiozinho de óleo na pipoqueira, uma xícara de milho na pia, boa vontade e um filme interessante pra começar.

O cabelo loiro, fino, liso dela desce reto sobre as costas e para ali, no meio. O pijama, branco com detalhes róseos, blusinha e shortinho, e as pantufas nos pés. Não fosse a fome de pipoca, a imagem dela quase não combinaria com o cenário... com a cena. Mas era fofa. É que, antes, fazer pipoca era coisa de mãe... bem antes. Agora era coisa dela.

Bem melhor que "fazendo" a pipoca, era ela trazendo a pipoca. Uma vasilha arredondada, verde, quase transbordando, que ela abraçava com uma mão na altura da cintura, fina, e com a outra mão, tentava não deixar que caíssem os grãos dali. Quase deu certo... mas feito João e Maria, ela andou da cozinha até a sala deixando um leve rastro. Só pra saber por onde passou. Ainda era fofa.

No sofá, três lugares. O da ponta esquerda, dela, pra apoiar o braço esquerdo. Os outros dois, pra eu deitar no colo dela. Colo de moça... cafuné de moça. Que filme, que nada. Eram só a pipoca e os olhos cor-de-mel, quase verdes dela. Não eram oblíquos, nem de ressaca -- Machado não falava dela -- mas eram lindos. Ávidos, grandes, lindos. Levemente amendoados... Lindos.

"Não vai ver o filme?", pergunta, fingindo não entender o que eu tanto olhava. "To vendo", eu, brega. E ela abriu o sorriso dela, que me faz bem. Corou as bochechas e soltou um "bobo", como quem fosse tímida. E eu já nem queria pipoca. Ela, numa manobra, me deu um beijo no nariz e se levantou. Ia pegar o guaraná porque, apesar da noite e da porta da sala aberta, fazia calor.

E nisso, eu acordei com o sol na cara. Não tinha gosto de pipoca, nem cheiro de colo, nem a memória do tato daquele beijo no nariz. Levantando, na geladeira eu vi que não tinha guaraná. Aliás, não tem há algum tempo. O povo aqui só toma Coca.

E lá fui eu procurar uma florzinha de mato, daquelas bonitas, pra colher. Talvez, a de um pé de araçá, que não respeitasse o tempo de florir.

A gente sonha porque pode. E não só quando quer.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Revisitando vontades


Bom, basta olhar pra notar que passei 2012 sem postar nada por aqui. Também... foi um ano e tanto. Fiz muita coisa... passei por muita coisa. Logo, há muita coisa pra esquecer... muita coisa pra lembrar.

Mas passou! E daqui pra frente, é vida! É amor! É tempo...

E quero voltar a dar vida a essas páginas. Com amor... com tempo.

Sinta-se à vontade pra voltar a me ler.

"Eita, Cabelo! Você voltou!"
"Voltei. Graças a Deus."

Ela (ou Chão de paineira 2)

Ela
não tem noção de tamanho.
Só isso explica!

Chegou feito nuvem
e quando eu vi já era lua!
Linda, branca, clara como o dia.

Agradável,
enluarou a noite preta.
Deu ao céu sem luz
a cor da ternura. Fez-lhe ser
ambiente de passeio
e poesia.
Deu ao céu sem texto
o papel de coadjuvante.
Já não era cenário.


Ela
não imaginava o estrago que faria.
De tão linda,
até o Sol foi-se avexar.
Por ela, o ocaso não vinha.
O astro-rei reconheceu:
perdi a majestade!
Por que vou aparecer?,
se a mim convém também
vê-la.


Mas toda lua tem suas fases.
Quando deu-se a nova,
tudo escureceu de novo.
O Sol, o céu, as estrelas,
ninguém a fez voltar.
Nem retomaram seus lugares.
A falta daquela luz era tanta
que tudo ficou sem rumo,
sem cor. Sem ser.


Ela
mudou e eles
não.