quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Feliz segundo novo!

Pra acabar o ano -- instantes antes de entrar no carro e ir pra praia --, talvez a maioria de vocês escreveria um texto falando de renovação, vida nova, algo que tenha a ver com os temas 'ano novo', 'virada', 'retrospectiva' ou coisa assim, né? Bom, eu não sou da maioria e, modéstia a parte, o que vocês têm a ver com isso? hehe Antes de me trucidarem com pensamentos e palavras blasfêmicos, calma... é só brincadeirinha. Mas aí vai meu texto que, na minha opinião, tem tudo a ver com fim de ano.

Baseado em fatos reais
(como a maioria das minhas estórias. mas essa faz sentido comentar)

por Daniel Gutierrez


19h. Toda a família tratava de acertar os últimos detalhes para a viagem que aconteceria na primeira meia-hora do dia seguinte. Naquele momento era a hora que o vô e a vó costumavam ir pra cama, por isso a mãe bateu à porta do escritório e disse "Téo, vá dar um beijo nos seus avós. Eles já estão pra fechar a porta". Eu: "Já vou."

Os velhinhos, perto dos 80, moram na casa da frente. Ele faz radioterapia, contra a tal doença na próstata mas, apesar da carta de lamentações, decorada e declamada todos os dias a quem pare para conversar, é bem humorado toda-a-vida. Ela, o aguenta há quase 60 anos.

"Vô, vó... fiquem com Deus, viu? To indo pra praia. Tenham uma boa virada de ano." Ela: "Oh, filho... obrigado! Boa viagem, vão com Deus. Não fossem as dores do seu avô, a gente até iria..." Tudo mentira... é difícil levá-los pra casa do meu tio, que é na cidade vizinha, longe 30 quilômetros... como iriam pra praia, há mais de 400?! Ele: "Não esquece de mandar meu abraço a todo mundo lá, viu? A namorada vai?" "Vai, vô." A vó: "A mãe dela não vai?" "Não, vó. Da família dela, só vai ela."

Então o vô puxou o papo que sempre tinha, falou do que fazia pra tapear as dores e passar o tempo. Me levou até o quintal e mostrou as correntinhas, rolos de fio encapado ou não etc. Tudo era resultado de tardes que ele passava "trabalhando" em materiais que qualquer um -- inclusive ele -- trouxesse da rua. E me contou das bengalas que fez com restos de cabos de vassoura e rodinho de banheiro. A vó, sempre querendo roubar um pinguinho da atenção, interrompia nossa conversa, na maioria das vezes sem sucesso, dizendo que aquilo ia longe... e contava sempre com minha resposta: "Deixa, vó". De repente, ela pergunta: "Não vai ninguém da família da sua namorada? Nenhum irmão?" "Não, vó".

Hoje o vô repetiu a história do rapaz que o parou na farmácia pra perguntar onde ele havia comprado aquela bengala que usava. Ele: "ieu feiz...", com aquele sotaque arrastado do caipira, filho de espanhol, que cresceu num lugar colonizado por italianos. Segundo o vô, o moço achou o equipamento muito bonito e útil, já que seu pai tinha cerca de 90 anos e mal podia andar sem se apoiar. Outra vez, o patriarca narrou a boa-ação que foi pedir que o homem passasse em casa pra pegar, de graça, uma das cinco ou seis bengalas que ele fizera.

Toda vez que vou ali, na casa deles, seja pra tomar café e comer pão, ou pela simples opção de passar pela casa deles quando chego do trabalho, é sempre o mesmo papo do vô, as interrupções da vó e minha atenção gratuita, que parece ser tudo que eles têm. Todo dia.

Quando percebi a brecha, ia me despedindo. Pra ser gentil, disse "se cuidem. E o senhor, vô, não vá dar trabalho à vó, hein." Tá, eu gritei isso. Ele não ouve bem. Ele respondeu: "Hoje sua vó disse que ia me visitar." Eu, sabendo a resposta: "onde?" "No velório!... só que ieu ainda nom foi lá." E caimos os três na gargalhada. Eu completei: "olha lá, o dia já tá terminando!..." A vó: "ele não tira essas coisas da boca!" Já saindo, eu disse: "só não vá deixá-la louca!" Ele: "mais?!" Outra gargalhada, um até logo, um vá com Deus, um Deus te abençoe e dois améns.

Comigo já na porta da sala, o vô lembrou: "não vai esquecer de mandar meu abraço e feliz ano novo pra todo mundo lá, hein..." "Tá, vô. Tchau." Eu, com toda essa vida pra viver, achei interessante nessa historia que, pra eles, também é ano novo. E um ano novo já gozando com a vida e com a morte!...

Afinal, e daí? Todo dia é um novo dia, como não seria cada ano um ano novo? Passar um segundo já é um estigma de mudança, de evolução temporal, pelo menos. Por isso, vamos dar menos importância para datas definidas por convenção e, em vez disso, viver a vida, faz favor?



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Sim, o Téo sou eu.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Gildo, o suicida arrependido

IMPRÓPRIO PARA MENORES DE 18 ANOS


por Daniel Gutierrez


Gildo era um cara pacato: comia arroz com feijão e, quando faltava a farofa, o ovo frito servia; fazia o serviço e, bem ou mal, levava patada do chefe; dava flores e chocolate pra noiva, amava como os homens amam e, se a cor das unhas mudasse de "vermelho terra" pra "marrom argila" sem um "Que lindo" que viesse dele com ar de sinceridade, Gildo voltava pra casa sem um beijo de boa noite.

Naquele dia, Gildo acordou decidido: "Vidinha filhadaputa. Vou me matar."

Gildo era um cara quieto, mas tinha lá suas sacadas. "Vivi a vida tão certinho... me mato ainda hoje, mas quero ter razões pra ir pro inferno." Foi pro trabalho de carro e sentiu que nada mudava se, em vez de esperar, ele atravessasse o sinal vermelho às 5h20, desde que olhasse os dois lados. Abriu a firma, ligou todas as máquinas e, sozinho, trabalhou como se fosse qualquer dia. Quatro horas depois o chefe chegou e notou a luz de fora ainda acesa: "Gildo! A porra da luz tá acesa!" Ele: "Vai tomar no olho do seu cú, velho brocha, careca, muquirana!" Um breve silêncio e "clique", seu Enaldo apagou a "porra da luz". Saiu pra almoçar na hora do almoço em vez de terminar todo o serviço da manhã antes. Parou pra tomar café e água quantas vezes quis -- três pra cada -- e viu que isto não atrasou o trabalho.

No fim do dia, saiu da firma e, em vez de ir pra casa da namorada, passou na avenida, pegou uma puta que parecia ser novinha. Tirou do bolso a nota amassada de 50 reais, lançou nos peitos da moça, tirou o pinto da calça e disse: "Me faz gozar em menos de meia-hora. Não pago mais do que isto."

Com as pernas bambas, saiu dali e parou num posto. Comprou cerveja e bebeu. "Trem salgado!..." Lúcido, dirigiu um pouco mais. Parou o carro na frente da casa do ex-colega de escola, aquele que fazia questão de -- sempre -- azucrinar a vida do pobre Gildo. O portão era baixo, se via a janela da sala aberta. Na garrafa, vazia, mijou até mais da metade. Olhou a obra: "molotov de mijo... hehehe". Jogou pra dentro da casa e saiu assim que a ouviu espatifar-se.

Parou em frente a uma construção abandonada da cidade. tinha uns oito andares. Saiu do carro, entrou e subiu até onde dava. Lá do alto, parou na borda do chão. Antes de se jogar, pensou e percebeu que aquele dia valera a pena. "Como fui mané... a vida é boa, eu é que não sabia viver!" Desceu do prédio e andou até o carro. Na calçada, um nóia parou e pediu a carteira. "Vai se foder. Não tenho dinheiro."

Gildo tomou um tiro e morreu, arrependido por não ter se matado.


Moral da história?
"E a vida lá tem moral, afinal?"