terça-feira, 1 de outubro de 2013

Voltei



Estaciona na garagem, desliga o carro, junta as coisas que precisa levar pra dentro de casa. Abre a porta, apeia, fecha a porta com cuidado pra não deixar cair nem chave, nem celular, nem livros, nem bolsa. Aperta o botão do alarme, pega o outro molho, destranca e abre a porta da frente, entra, fecha e tranca a porta da frente, acende a luz da sala, suspira... "Aaaah... voltei."

Aquele cheiro de lar entra pelas narinas, ativa uma série de coisas boas pelo corpo -- entre elas, aquele aconchego -- e fim. "Agora, sim: livre." Sabe que o conceito de liberdade é relativo. Prefere ser livre com a porta trancada: é a garantia de que nenhum invasor vá barrar esse sorriso. Nem em casa, nem no coração. Despeja no sofá tudo que tinha nos braços, corre pro quarto, tira a roupa. Uma tanga e só. Precisa mais que isso? De portas fechadas, não. Olha pro espelho e canta Ed Motta. "Que bom voltar, de novo encontrar, beijar você, rever você... beijos e abraços sem fim... (...) Você me faz tão feliz!"

E divaga sobre o verbo... "Quantas vezes eu não deixei de voltar pra seguir em frente? Tantas vezes eu pensei que um caminho reto fosse melhor... Voltar é bom. Dar voltas também, de vez em quando. Bons caminhos têm curvas e voltinhas. Eu tenho curvas! Até o vento faz curvas. Até a água... A Terra é redonda... Que bom voltar."

Volta pra sala, deita no tapete, sorri. A paz voltou com ela.

terça-feira, 21 de maio de 2013

Sobre beijos e pescoços

Porque amor é cógito, e sexo é poiesis, já diria Rita Lee.

Com ela, eu gosto devagar
Gosto de vagar por aquele corpo a esmo
Ir mesmo a contragosto
Porque o que a boca não quer
os olhos imploram.
Me agrada divagar sobre aquelas curvas
porque, saberá Deus porquê,
é onde me turva a visão.
E não me sobra paladar para dar a noção
de quantos anos são necessários,
pra nesses olhos eu parar
de me perder.

E falando em paladar,
ai aquele hálito de canela...
Dica dela que aproveito pra jamais esquecer
"Passei no mercado e comprei balinha"
Já mais apaixonado me deixa
sendo assim.
"Não me deixa nunca, be?"

Eu não me deixaria deixá-la.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Tem gente que não sabe ser gente

"Você sabe que devia ter ficado mais pra trás, né?"

No banco, que tem seis caixas-rápidos mas, dos quais, cinco permitem saque. Apesar disso, hoje, só UM tinha notas (de R$ 10 e R$ 20) pra saque. Um homem, de cerca de 40 anos, usa este único caixa disponível pra retirar dinheiro. Eu entro e começo a esperar pela minha vez. À minha frente, um senhor de prováveis 60 anos - ou pouco mais - é o próximo.

Assim que o rapaz termina de usar o caixa, uma senhora entra na agência e, vendo a fila em um único caixa, pergunta o que há com os outros. Eu, como já fiz inúmeras vezes, explico que só um dos caixas tem o serviço de saque disponível, provavelmente pra evitar que a "moda" atual de explodir caixas-rápidos dê muito dinheiro aos "adeptos".

Naturalmente, conforme o senhor que estava à minha frente ocupou o caixa, eu dei um passo à frente, pro lugar dele. Daí em diante, nada fiz que não fosse admirar o tempo passando, enquanto eu não podia usar o caixa.

Assim que o idoso livrou a boca do atendimento automático, avancei e comecei a usar. Enquanto inseria o cartão, notei que ele se aproximou. Pensei que estivesse checando se não tinha esquecido nada ali, quando ele me apontou o indicador em riste e disse.

"Você sabe que devia ter ficado mais pra trás, né?"

Eu, não entendendo, olhei pra trás de mim e vi duas senhoras esperando pelas suas vezes, igual eu estava logo antes. Soltei um "Oi?", querendo saber qual era o motivo da indagação do senhorzinho. Pra isso, ele me respondeu.

"Cê entendeu muito bem o que eu disse."

Fiquei atônito. Notei que a indagação era, na verdade, uma acusação! O tiozinho tava insinuando que eu o bisbilhotei enquanto ele fazia o saque dele. oO' Cara... Depois de sair daquela pausa que a Terra deu, eu só consegui responder "Não, eu não entendi do que o senhor tá me acusando", deixando bem claro que eu preferia não acreditar no que ele havia acabado de dizer.

Concordo que, nestes dias, a gente não pode confiar em ninguém. Concordo que o idoso lá provavelmente não me conhecia e, por isso, possa ter desconfiado. Mas sejamos razoáveis. Se eu to desconfiado que alguém teria coragem suficiente pra fazer o que ele insinuou, o que eu faria: guardaria o rosto da pessoa, tentaria descobrir o nome dela e prestaria atenção em qualquer baixa irregular que acontecesse na minha conta.

Por que raios eu acusaria, em público e pessoalmente, uma pessoa que pode ser perigosa?! O que eu ganharia com isso? Fico até agora sem entender o que se passou na cabeça daquele senhor. Por fim, existe uma reflexão que eu preciso fazer: vale a pena me insultar como aquele homem fez? Por sorte dele, ele desconfiou da pessoa errada. Se tivesse feito com a pessoa "certa", definitivamente estaria com motivos pra se preocupar. Por si mesmo, pela família dele, pelo dinheiro dele... Mas quem saiu abalado da situação fui eu. Ai, gente. hehe

segunda-feira, 18 de março de 2013

Sonhos destes dias de verão

Não sou do tipo que tem preferência por uma estação ou por outra. Mas gosto de salvar o bom de cada uma.

É quase um sacrilégio curtir uma chuvinha de fim de março sem lembrar Tom e Elis. É um clichê que não se deve impedir. Talvez o único. Vale lembrar: não sou do tipo que guarda preferência pelo verão ou pelo inverno, pela primavera ou pelo outono. Acontece que cada uma tem seus agrados. E, deste verão, o que vai deixar saudade é exatamente esse marco transitório. Vou sentir falta da chuva.

Normalmente, o que me reserva saudade da estação passada são alguns momentos aleatórios, apenas. Por exemplo: os dias quentes no verão, pra encontrar os amigos e beber algo bem gelado; os dias frios no inverno, pra se aconchegar em casa, seja só ou acompanhado, seja de alguém ou de um bom livro, filme, disco; as brisas quentes das manhãs de primavera, com as revoadas de periquitos entre uma palmeira e outra; ou os dias frescos do outono, praquele bom malbeque. Mas há as chatices de cada temporada, também. A nhaca que dá nos dias de calor, a preguiça de sair da cama nos dias gelados, enfim. Mas a chuva do verão de 2013... ah, a chuva. Ela e seu cheiro...

Talvez, este tenha sido o verão que mais me trouxe sonhos. E os do fim do verão talvez sejam os mais interessantes. E não falo só dos sonhos durante o sono, não. Foram bons também os sonhos que tive acordado. Os que realizei e os que ficaram no plano da fantasia (e que não vão sair de lá). Os que forjei e os que me vieram inspirados pelo que vi, imaginei, senti. Como aquele em que vi o par de lábios, em forma de barquinho, pintado numa tela... ele ia velejando rumo ao horizonte, se afastando daqui. Engraçado, mas os melhores sonhos eram acompanhados do cheiro da chuva. Se não chovia no momento em que eu sonhava, era logo antes ou logo depois de chover.

As águas desse março mais abrem o outono que fecham o verão, na verdade. E que me perdoem Tom e Elis, mas acho que é menos doloroso vermos a vida assim. Não sou filósofo, mas me permiti divagar sobre o tempo esses dias. E com o pouco que pensei, cheguei à conclusão de que o problema não é o tempo. O problema somos nós, humanos!

Veja: o tempo é anterior a nós... é preciso aprender a adaptar-se. Na verdade, o que vale é o instante. Nada começa, nada termina: tudo acontece. Nós temos mania de alongar eventos desde seus acontecimentos até o que pensamos que seja o final. Na verdade, tudo é instantâneo: acaba assim que aconteceu. Até pode acontecer repetidamente, instante após instante. Mas não se deve fundir uma sequência de instantes em UM SÓ instante. Por isso, quando percebemos que algo vai começar, na verdade, já aconteceu. Quando pensamos que está perto do fim, já aconteceu. Nós não sabemos conviver direito com o tempo. No "instante" em que aprendermos essa artimanha, sentir saudade vai doer menos.

Devaneios à parte, que venha o outono. Ele e todo o resto... E, se São Pedro decidir jogar de cima aquela água temporã, a gente se faz o favor de lembrar.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Jacinto não sentia

Nem o sol saíra, lá estava ele, sob a soleira da porta. Era dia de missa d'alvorada, que ele gostava de dizer assim, com apóstrofo.

Era finzinho da madrugada de quarta-feira de um verão comum naquele lugar. Chovia quase todo dia, entre o fim da tarde e o início da noite, mas já fazia alguns dias desde que São Pedro decidira pelo estio. Talvez por isso, o céu tivesse aquelas nuvens: vaga promessa de precipitação mais tarde. Bom, o que importa é que aquela manhã era fresca. Tinha uma brisa suave, aconchegante. Beirava o carinho. Mas Jacinto não sentia. Nem o frescor daquela manhã, nem o cafuné do vento.

Não sentia, mas via. Via que as folhas da jardineirinha, à esquerda da porta da frente, na varanda, balançavam levemente. E como ele era só, fingia que sentia e acabava gostando da suposta maciez com que o ventinho roçava a barba, curta e rala, dele. Chamava o sopro de "zéfiro", embora a primavera já tivesse passado e ele não soubesse se vinha mesmo do oeste. É que ele gostava do mito de Jacinto, que leu quando era novo, intrigado sobre a origem do próprio nome. "É grego!", exclamou quando soube, aos 16. Apaixonou-se por mitologia. Tanto que cultivava jacintos naquela jardineira. Eram azuis, quase iguais ao cabelo dele. (Sabe quando o grisalho fica azulado? Então.) Formou-se em história, mas não exercia. A bem da verdade é que Jacinto deixou de sentir depois da formatura. Não sentia amor, não sentia ódio, não sentia paixão. Nem frio, nem calor, nem medo, nem gosto, nem cheiro, nem sabor. Nem vontades. Nada.

Foi à missa a pé, ainda sob o breu. Ele não sentia a presença de um Deus, mas precisava manter a vida em comunidade. Afinal, o também grego Aristóteles já havia fundamentado, antes do próprio Cristo, a tese de que "o homem é um animal social". Dava o abraço da paz, mas não sentia o calor humano dos irmãos que abraçava. Comungava, mas não sentia o gosto da hóstia ou do vinho. Numa confissão, certa vez, o padre disse que Jacinto talvez merecesse o céu por tamanho suplício em terra, mas seria um felizardo porque, normalmente, a vontade de pecar vem do sentimento. "Felizardo?! Só me diz qual a próxima penitência, padre."

Eu não consigo imaginar como Jacinto vivia sem sentir. Dizem que quem perde um dos sentidos acaba aguçando os outros, como forma de suprir a necessidade que ficou. Por isso alguns cegos teriam a audição mais apurada. Eles aprendem a viver com o que lhes falta. Mas como é que se vive sem sentir?! Não dá nem pra dizer que pode ser doloroso, porque nem dor ele sentia.

Jacinto não fazia a barba pra evitar escoriações ou mutilações. No início, machucou bastante o rosto e o pescoço, que agora a barba cobria. Talvez por isso fosse rala. Quem fazia era o barbeiro, uma vez por mês, barba, cabelo e bigode.

"Vão em paz e que o Senhor vos acompanhe", disse o padre. "Demos graças a Deus", responderam Jacinto e os que estavam na igreja. Como era de costume, dali ele passaria na padaria e compraria pão. Ele gostava de pão com manteiga e café antes de parar de sentir. E foi um dos únicos hábitos que ele manteve (junto com o de cultivar jacintos na varanda). É que ficou difícil manter uma rotina, quando já não havia prazer no que ele fazia. Mas comprar pão depois da missa era nostálgico -- ele não sentia a nostalgia, mas gostava de lembrar. Tentava resgatar aquilo.

Chegou em casa, passou o café, sentou no banco da varanda, no alpendre, abriu o jornal, leu as notícias. Lia tudo. Não tinha uma editoria preferida. Lia porque ler construía a história. E não porque fosse o que ele tinha estudado, mas porque era o único modo de manter a memória, afinal o conhecimento, o léxico, o raciocínio de Jacinto substituíam o sentimento e as sensações. Por isso, ao fim do dia, ele relia tudo que havia lido, pra organizar as ideias. Ele era quase uma máquina: não perdia tempo com nada. Só fazia o que tinha que ser feito.

O almoço, por exemplo. A casa dele era um tanto quanto diferente do lado de dentro. Tinha termômetros e espelhos grandes junto de todos os relógios. E eram dois relógios pra cada cômodo. Assim, ele sabia quando era hora de se alimentar, se a temperatura estava muito baixa, muito alta, se era a hora do banho, ou se ele precisava tomar banho, ainda que fora de hora, enfim. E na hora do almoço começou a chover. Tranquilamente, terminou de comer. Só comia o que o corpo necessitava: um pouco de cada nutriente. Não variava, porque não precisava. Todos os dias, era arroz, feijão, frango grelhado e salada de alface. E água.

Lembrou que tinha esquecido de regar os jacintos e foi botá-los na chuva. Lá fora, com a jardineira nas mãos, andou até a chuva. Os pingos caiam no braço dele e ele lembrava que a última vez que beijou a única mulher que já tinha amado (e que já o tinha amado) foi numa tarde chuvosa, dias antes da formatura. Isso fora havia mais de 30 anos... mas ele lembrava com tanta vivacidade que poderia descrever a sensação. Mas ele só lembrava: não sentia saudades também. E não conseguia nem sentir raiva por causa disso.

Foi nessa hora que ele olhou para os jacintos, na chuva, e quase sentiu algo: inveja. Mas também não pôde. Afinal, Jacinto não era um cara triste. Mas também não era um cara feliz. Era um cara que voltaria pra casa, secar aquela água de chuva, pra não ficar doente, ciente de apenas uma coisa: ele não sentia nem que existia.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Pipoca

Um fiozinho de óleo na pipoqueira, uma xícara de milho na pia, boa vontade e um filme interessante pra começar.

O cabelo loiro, fino, liso dela desce reto sobre as costas e para ali, no meio. O pijama, branco com detalhes róseos, blusinha e shortinho, e as pantufas nos pés. Não fosse a fome de pipoca, a imagem dela quase não combinaria com o cenário... com a cena. Mas era fofa. É que, antes, fazer pipoca era coisa de mãe... bem antes. Agora era coisa dela.

Bem melhor que "fazendo" a pipoca, era ela trazendo a pipoca. Uma vasilha arredondada, verde, quase transbordando, que ela abraçava com uma mão na altura da cintura, fina, e com a outra mão, tentava não deixar que caíssem os grãos dali. Quase deu certo... mas feito João e Maria, ela andou da cozinha até a sala deixando um leve rastro. Só pra saber por onde passou. Ainda era fofa.

No sofá, três lugares. O da ponta esquerda, dela, pra apoiar o braço esquerdo. Os outros dois, pra eu deitar no colo dela. Colo de moça... cafuné de moça. Que filme, que nada. Eram só a pipoca e os olhos cor-de-mel, quase verdes dela. Não eram oblíquos, nem de ressaca -- Machado não falava dela -- mas eram lindos. Ávidos, grandes, lindos. Levemente amendoados... Lindos.

"Não vai ver o filme?", pergunta, fingindo não entender o que eu tanto olhava. "To vendo", eu, brega. E ela abriu o sorriso dela, que me faz bem. Corou as bochechas e soltou um "bobo", como quem fosse tímida. E eu já nem queria pipoca. Ela, numa manobra, me deu um beijo no nariz e se levantou. Ia pegar o guaraná porque, apesar da noite e da porta da sala aberta, fazia calor.

E nisso, eu acordei com o sol na cara. Não tinha gosto de pipoca, nem cheiro de colo, nem a memória do tato daquele beijo no nariz. Levantando, na geladeira eu vi que não tinha guaraná. Aliás, não tem há algum tempo. O povo aqui só toma Coca.

E lá fui eu procurar uma florzinha de mato, daquelas bonitas, pra colher. Talvez, a de um pé de araçá, que não respeitasse o tempo de florir.

A gente sonha porque pode. E não só quando quer.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Revisitando vontades


Bom, basta olhar pra notar que passei 2012 sem postar nada por aqui. Também... foi um ano e tanto. Fiz muita coisa... passei por muita coisa. Logo, há muita coisa pra esquecer... muita coisa pra lembrar.

Mas passou! E daqui pra frente, é vida! É amor! É tempo...

E quero voltar a dar vida a essas páginas. Com amor... com tempo.

Sinta-se à vontade pra voltar a me ler.

"Eita, Cabelo! Você voltou!"
"Voltei. Graças a Deus."

Ela (ou Chão de paineira 2)

Ela
não tem noção de tamanho.
Só isso explica!

Chegou feito nuvem
e quando eu vi já era lua!
Linda, branca, clara como o dia.

Agradável,
enluarou a noite preta.
Deu ao céu sem luz
a cor da ternura. Fez-lhe ser
ambiente de passeio
e poesia.
Deu ao céu sem texto
o papel de coadjuvante.
Já não era cenário.


Ela
não imaginava o estrago que faria.
De tão linda,
até o Sol foi-se avexar.
Por ela, o ocaso não vinha.
O astro-rei reconheceu:
perdi a majestade!
Por que vou aparecer?,
se a mim convém também
vê-la.


Mas toda lua tem suas fases.
Quando deu-se a nova,
tudo escureceu de novo.
O Sol, o céu, as estrelas,
ninguém a fez voltar.
Nem retomaram seus lugares.
A falta daquela luz era tanta
que tudo ficou sem rumo,
sem cor. Sem ser.


Ela
mudou e eles
não.