Baseado em fatos reais
(como a maioria das minhas estórias. mas essa faz sentido comentar)
por Daniel Gutierrez
19h. Toda a família tratava de acertar os últimos detalhes para a viagem que aconteceria na primeira meia-hora do dia seguinte. Naquele momento era a hora que o vô e a vó costumavam ir pra cama, por isso a mãe bateu à porta do escritório e disse "Téo, vá dar um beijo nos seus avós. Eles já estão pra fechar a porta". Eu: "Já vou."
Os velhinhos, perto dos 80, moram na casa da frente. Ele faz radioterapia, contra a tal doença na próstata mas, apesar da carta de lamentações, decorada e declamada todos os dias a quem pare para conversar, é bem humorado toda-a-vida. Ela, o aguenta há quase 60 anos.
"Vô, vó... fiquem com Deus, viu? To indo pra praia. Tenham uma boa virada de ano." Ela: "Oh, filho... obrigado! Boa viagem, vão com Deus. Não fossem as dores do seu avô, a gente até iria..." Tudo mentira... é difícil levá-los pra casa do meu tio, que é na cidade vizinha, longe 30 quilômetros... como iriam pra praia, há mais de 400?! Ele: "Não esquece de mandar meu abraço a todo mundo lá, viu? A namorada vai?" "Vai, vô." A vó: "A mãe dela não vai?" "Não, vó. Da família dela, só vai ela."
Então o vô puxou o papo que sempre tinha, falou do que fazia pra tapear as dores e passar o tempo. Me levou até o quintal e mostrou as correntinhas, rolos de fio encapado ou não etc. Tudo era resultado de tardes que ele passava "trabalhando" em materiais que qualquer um -- inclusive ele -- trouxesse da rua. E me contou das bengalas que fez com restos de cabos de vassoura e rodinho de banheiro. A vó, sempre querendo roubar um pinguinho da atenção, interrompia nossa conversa, na maioria das vezes sem sucesso, dizendo que aquilo ia longe... e contava sempre com minha resposta: "Deixa, vó". De repente, ela pergunta: "Não vai ninguém da família da sua namorada? Nenhum irmão?" "Não, vó".
Hoje o vô repetiu a história do rapaz que o parou na farmácia pra perguntar onde ele havia comprado aquela bengala que usava. Ele: "ieu feiz...", com aquele sotaque arrastado do caipira, filho de espanhol, que cresceu num lugar colonizado por italianos. Segundo o vô, o moço achou o equipamento muito bonito e útil, já que seu pai tinha cerca de 90 anos e mal podia andar sem se apoiar. Outra vez, o patriarca narrou a boa-ação que foi pedir que o homem passasse em casa pra pegar, de graça, uma das cinco ou seis bengalas que ele fizera.
Toda vez que vou ali, na casa deles, seja pra tomar café e comer pão, ou pela simples opção de passar pela casa deles quando chego do trabalho, é sempre o mesmo papo do vô, as interrupções da vó e minha atenção gratuita, que parece ser tudo que eles têm. Todo dia.
Quando percebi a brecha, ia me despedindo. Pra ser gentil, disse "se cuidem. E o senhor, vô, não vá dar trabalho à vó, hein." Tá, eu gritei isso. Ele não ouve bem. Ele respondeu: "Hoje sua vó disse que ia me visitar." Eu, sabendo a resposta: "onde?" "No velório!... só que ieu ainda nom foi lá." E caimos os três na gargalhada. Eu completei: "olha lá, o dia já tá terminando!..." A vó: "ele não tira essas coisas da boca!" Já saindo, eu disse: "só não vá deixá-la louca!" Ele: "mais?!" Outra gargalhada, um até logo, um vá com Deus, um Deus te abençoe e dois améns.
Comigo já na porta da sala, o vô lembrou: "não vai esquecer de mandar meu abraço e feliz ano novo pra todo mundo lá, hein..." "Tá, vô. Tchau." Eu, com toda essa vida pra viver, achei interessante nessa historia que, pra eles, também é ano novo. E um ano novo já gozando com a vida e com a morte!...
Afinal, e daí? Todo dia é um novo dia, como não seria cada ano um ano novo? Passar um segundo já é um estigma de mudança, de evolução temporal, pelo menos. Por isso, vamos dar menos importância para datas definidas por convenção e, em vez disso, viver a vida, faz favor?
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Sim, o Téo sou eu.