terça-feira, 4 de outubro de 2011

O gosto da areia

por Dan Gutierrez

O vento sopra o chão de areia quente
a nuvem sobe e toma o ar
cobre o rosto do eremita que eu sou
O lenço protege das vergonhas
e dos venenos que eu nunca pôde respirar
mas que têm o cheiro que sempre quis sentir

Esta atração agora é traição
corrói lavouras de sentimentos
que a vida plantou e que cresceram por bem
É uma chuva ácida que cai
desta nuvem, que agora é de gafanhotos
de longe, bruma; de perto, farpas de pequi na goela

Não há ilusão nos olhos de quem vê
o que há é vontade de sentir na pele
e ver se passa logo esse vento que lixa
A boca, que fecha ao trombonar do vento
expressa em reticências o que vai por dentro
e tem por fetiche provar um futuro mais doce.
O quanto antes.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

À nostálgica

por Dan Gutierrez

Eu hoje me lembrei da rua dos Preguiças
Daqueles dias de moleque mirim
de pés descalços na sarjeta da ladeira do Itaim,
das correrias pelos becos, galerias,
brincadeiras, gritarias...
Do pique-esconde, o pega-pega,
o pega e beija, escondido do padre
da capelinha amarela...

Eu vi teus olhos verdes, puxadinhos, de moleca,
esparadrapo no queixo machucado, de sapeca
Você escondida entre os galhos da sibipiruna,
lá do alto, espiando os meninos tomar banho
nos fundos do Itaúna,
o clube que só os mais velhos podiam entrar
e a gente sonhava: o que é aquilo
que solta fumaça no copo do bar?

Lembra que eu subi no ipê roxo
pra te chamar a atenção?
De tanta inveja dos pelados que você olhava,
desequilibrei e dei com a cara dura no chão.
Você me ouviu despencar
e percebeu que eu te espiava a espiar
E mais que o ipê, você roxeou de vergonha
mas saltou e, num pouso feio, de cegonha,
me ajudou a levantar, e perguntava:
machucou, moleque louco?
Como é que sobe de braço quebrado
em galho oco de ipê?
E eu dizia, feliz com teu afago:
tenho poderes de mago,
e do meu braço quebrado, eu já até esqueci.
Eu só queria ter no meu queixo,
um esparadrapo bonito, como esse
que você tem aí.

E de queixo ralado, sangrando um pouquinho,
me acheguei do teu lado e sussurrei,
bem baixinho:
mas na falta de outra atadura,
me contento com a tua assanhadura.
E se quiser me dar um beijo,
eu saro do desejo
de ter um queixo igual ao teu.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Da série "O mundo é um ovo"

por Daniel Gutierrez

Ah, como eu amo minha profissão.



Fui colher duas (sim, só duas) entrevistas, na verdade depoimentos, para o Jornal da Região Sudeste, do amigo e professor Gil Santiago. Ele pediu que eu fosse falar com dois moradores da Ribeirânia sobre o que há de celebrável e o que há de ruim no bairro, nesta semana em que Ribeirão faz 155 anos. Eu deveria também fotografar os entrevistados. Vale lembrar que a Ribeirânia é um bairro de classe média-alta e alta, principalmente habitado por uma população de idade mais avançada. E, devido à vida que tenho levado, conciliando as manhãs no jornal, as tardes na rádio e as noites na faculdade, só me restava procurar entrevistados entre as 18h e as 19h, momento em que está começando a anoitecer.



A Ribeirânia, exatamente por ter mais gente abastada, deveria ser um bairro difícil de conseguir esse tipo de depoimento, especialmente neste horário. Pois bem, lá fui eu, esperando ter dificuldades. Aleatoriamente, escolhi uma rua e, novamente, de forma randômica, comecei a escolher as casas. De cinco tentativas, consegui os dois personagens. No primeiro êxito, apareceu à porta uma senhora simpatissíssima: dona Regina Fraga de Almeida. Pedi os depoimentos e ela deu. Depois, tentei uma casa na mesma rua, só que na quadra debaixo e fui recebido, novamente, por outra pessoa de simpatia e afabilidade exemplares (embora detrás do portão, nos dois casos): seu Orlando Octávio de Freitas. Falou comigo e disse que o problema do bairro era, de fato, a falta de segurança. Como eu tinha levado apenas o celular, as fotos não ficaram boas.



Voltei hoje para fotografar com uma câmera digna de assim ser chamada e, no batepapo que é característico de nós, jornalistas, acabei descobrindo que dona Regina é amiga de infância e de família de uma tia minha de Guariba. E o assunto surgiu quando falávamos dos porquês da diminuição da segurança, tanto em RP quanto em Pradópolis, minha cidade. O que era pra ser feito em 5 minutos (as fotos), levou meia hora, com um longo e amistoso batepapo sobre laços familiares.



Ao sair dali, fui fotografar seo Orlando. A casa estava em reforma e fui recebido pelo servente de pedreiro, um rapaz jovem, talvez com menos de 20 anos, de olhos azuis, cabelo claro. Perguntei se o dono da casa estava, ele disse que sim. Toquei o interfone e, antes do seo Orlando, me cumprimentou seu golden retriever, um cachorro tão afável quanto era grande. E era bem grande. Pra não perder o costume, eu tasquei o batepapo com o proprietário, que apareceu na sacada. Pedi desculpas pelo atraso e expliquei o porquê da demora: havia descoberto uma amiga de infância da tia Tita, que vive em Guariba. Pasmem: o servente era daquela cidade e já tinha tido aulas com minha tia, que é professora de artes e pianista. "O mundo é um ovo ou o quê?" perguntei, enquanto o idoso chegava ao portão.



Enfim, tirei a foto, agradeci e apertei a mão do seo Orlando. Me despedi dele e do garoto, que limpava equipamentos de trabalho em frente à casa. E voltei pro campus abobado com mais uma surpresa que meu ofício me guardou.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Ser é

por Daniel Gutierrez


Ser é um aturar-se constante.
É maturar cada instante
de vida,
é cauterizar a ferida
e dar forma à cicatriz.

Ser é querer se tornar
plataforma ou altar
palco ou tablado de si
Um general generoso a gerar
caminhos prum dia formar
Visconde o que já foi Saci.

Ser é esconder-se de si
e revelar-se a outrem
que perceba alguém
que não tem o que encobrir.

Ser é nem ter, nem estar
nem ver, nem ouvir
nem sentir, nem falar.
Não, nem pensar.
Ser é.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Meu nome é Letra

por Daniel Gutierrez

Prazer!, meu nome é Letra.
Não sou O, nem sou A: sou Letra.
Se estou nu, ou vestido de Arial,
sigo sendo Letra.

Na carta sisuda do patrão
visto a touca Times New Roman.
No corpo do e-mail pra galera
vão falar que sou Verdana.
No bilhete da escolinha,
me fantasio de Comic Sans.
Não sou negrito, itálico, regular...
Ora, um homem,
seja branco, negro, gordo, feio,
não é homem?
Eu, sublinhado, sobretachado, vazado ou apagado,
sou, portanto, Letra.

E não me chame de palavra!,
que eu não dependo de ninguém pra ser mim mesmo.
Sou Letra e ponto.
Ponto não. Nem pingo.
Aliás, o pingo no I não é letra, viu?
Letra sou eu!

Estou aqui, estou aí.
Sou melhor até do que a física,
porque eu, sim,
consigo ocupar o mesmo lugar no espaço que você:
estou no seu nome, no seu corpo,
na sua fala, na ponta dos seus dedos...

Eu sou tão excepcional
que até se você me escrever uma carta,
eu vou estar lá, no papel.
Não me leve a mal, mas sem mim você não vive.
Sou nem água, nem ar.
E até me permito ser mal usado.
Afinal, é aquela coisa:
falem bem, falem mal,
mas falem de mim.
Ou falem do que for.
Meu nome é Letra
e eu vou estar lá.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Um xis-búrgue compreto e uma esplaite

por Daniel Gutierrez




Às vezes penso que seja chatisse de jornalista... Mas acho que você vai me entender depois que ler.


Segundona braba. Depois de uma manhã inteira (das 6h30 às 12h30) na rádio, chego em casa às 13h35, com um solzão de fritar ovo no asfalto e um rombo no estômago, onde deveria haver um almoço. Alguém aí iria querer alguma coisa além de um bom prato de arroz, feijão e ovo frito fresquinhos, feitos na hora?

Tadinha, minha mãe estava lá na área de serviço se matando com a roupa do fim de semana de uma família de 3 homens (hommers) e só ela de dona. Totalmente explicável o fato de não haver almoço pronto. Quando notou que eu tinha chegado, ela ainda disse: "Nany¹, em cima da pia tem daquele macarrão de ontem, que a dona Maria fez e o molho... Na geladeira tem o arroz que sobrou da janta. É só esquentar no microondas". O queixo caiu no chão e eu perguntei: "Macarrão com arroz, mãe?" Ela respondeu "É, filho.", com um tom de voz que por si dizia: "Realmente esperava que eu cozinhasse algo com tudo isso de roupa pra lavar?"

Eu entendi a posição da mãe. Corri pra minha carteira, peguei uma nota de 20 e saí em busca de algo pra encher o buraco, que continuava aberto e crescendo. "Acho que o carrinho de lanches do Pelé tá aberto... É lá mesmo que eu vou."

Grana no bolso, destino em mente, pé na estrada. Chegando no carrinho, vi que a mulher do Pelé atendia. Ele não estava... Eu prefiro o lanche dele, mas vá lá. Eu: "Sirley, tem muito lanche na frente?" Quando ela disse que não, logo retruquei: "Então me tira um X-Beicom²."

Sentei e esperei. Antes que o meu ficasse pronto, outros chegaram e pediram os seus. Quando o meu estava quase pronto, ela perguntou, pra minha infelicidade: "O seu é X-Beicom compreto, né?" Eu olhei... Esperei coisa de uns 5 segundos fitando o olhar de dúvida da moça, que não deve ter mais de 45 anos.

Antes que o chacal que há em mim pudesse saltar sobre ela corrigindo: "É COMPLETO, SUA ANTA! COMPLLLLLETO!!", me contive. Fiz que sim com a cabeça e resmunguei: "Aham."

Instantes depois, levantei, peguei o sanduba e ataquei. Enquanto comia, inevitavelmente prestava atenção nas pessoas que, ao meu lado, iam pegando seus pedidos. Um rapaz que também ja pegava seu lanche perguntou: "Dona, tem guaraná?" E a Sirley: "Hm... eu vou ter Coca, Fanta, suco..." E pra crucificar a odisséia em que comer um lanche se tornara, ela disse: "E tem esplaite também."

O X-Beicom esfriou subitamente na minha boca. A primeira coisa que me veio à mente foi a lata de refrigerante. Pensei: "Será que ela não sabe ler, ou o Sprite escrito na lata só é legível pra mim?" Acho que deve ter doído até no ouvido do moço, porque mal ela terminou de dizer "esplaite" ele já pedia: "Não, pode ser Spraite mesmo". Poxa, ele pronunciou corretamente!

Apressei as mastigadas, terminei de comer e paguei logo, antes que eu ouvisse outra pérola... ja tava bom por uma tarde. Enquanto voltava pra casa, pensava nesse assunto, já com vontade de escrever pra você ler, quando pensei comigo: "Gosto de beicom e ambúrguer o lanche tinha... Mas cadê o queijo? Sim, porque se é X (cheese, tradução sonora chula, do inglês pro português) Beicom, deveria ter queijo e beicom. Talvez não tivesse queijo. Poxa, mas tinha até tomate... Mas deixa pra lá.

Depois disso cheguei a pensar em fazer uma pesquisa com donos de carrinhos de lanche com a seguinte pergunta: "Por que todos os seus lanches têm X no começo?" Mas nisso eu ja tinha me acalmado, matado a fome, e toda a irritação já não fazia sentido. Mas se eu tiver que jantar, vai ser em casa. Nada de carrinhos de lanche até o fim da semana.


--

¹ É um apelido carinhoso de infância, como me chamam em casa.

² Nos meus textos, palavras importadas do inglês serão grafadas sempre como são pronunciadas, exceto quando forem nomes ou quando for conveniente escrever na grafia original.




Originalmente postado em http://papodejornalistasdaredacao.blogspot.com/ (8/fev/2010)

O Ga(...)go

por Daniel Gutierrez


Depois de uma discussão cansativa, o cara ia falar o seguinte: "Não tem ninguém na chácara, caraio..." Só que ele gaguejava um pouco.

Aí ele disse "Não tem ninguém na chácara, cara, cara, cara, cara..." Só parou quando faltou o ar e ele caiu no chão.

O problema: ele não conseguia acabar de falar "chácara", ou tava difícil conseguir falar "caraio"? Fica eternamente a dúvida. O cara morreu.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Pela intentona das Amígdalas

E o professor da oficina de produção de textos exortava à sala:
– Muito bem, meus queridos! Agora vamos botar nossas amígdalas para trabalhar!
– Mas, professor! As amígdalas não escrevem, nem declamam, nem expressam sentimento!
– Exatamente por isso! Talvez esteja na hora de elas começarem.


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Já fui assim, fazendo até as amígdalas me inspirarem... Era uma época que eu escrevia quase sem esforço. Hah, hoje em dia, ah, como as coisas mudam...

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Canto de estrada

Prólogo:
Espere por mim, morena,
Espere que eu chego já...
O amor por você, morena
Faz a saudade me apressar.



por Daniel Gutierrez



Houve estradas em que ouvi histórias
contos do bem e do mal
que me trouxeram sonhos e encontros
canção, gangorra e final

Eiras ou beiras,
cantos sem cabeça e pé
Armados até os dedos, menina
munido de amor e de fé

Como um corcel, não sem dono
mas louco em saudade a voltar
pros braços de ti, criadouro
Teu mel, teus braços: altar

E vou feito a flecha a Teresa
De gozo, de amor e de paz
Espere por mm, minha prenda
E a lua, que brilhe sagaz.


--
Esse vai ser musicado, talvez ganhe um refrão. Quando estiver pronto, gravo um vídeo e posto aqui. O prólogo, como não dispensasse comentários, é da música "Espere por mim, morena", de Gonzaguinha.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Botafogo (Queima)

por Daniel Gutierrez


A saia mais curta
o café mais preto
a barra da burca
e a barca ao relento

O talo do cravo
a pá de cimento
a moça mais bela
e o bairro mais gueto

O livro mais grosso
o jarro mais cheio
a barba do moço
o risco no meio

O quase no nada
O fardo alheio
a tal rebimboca
do engenho ao recreio

Morcego ou pardal
canino ou felino
a arara no pau
menina ou menino?

A mãe do bebê
o arco da velha
sem gana ou porquê
Veneza ou Marselha

Central ou geral
real ou banal
Carvalho ou Magal
good man or outlaw

De pano ou metal
garboso ou boçal
De pedra ou marfim
carvão, o nanquim
(Se é bom ou ruim)